Texto de Jaddson Luiz publicado na 3ª edição da Revista Memória LGBT
O Círio de Nossa Senhora de Nazaré ocorre em Belém do Pará, na segunda semana de outubro, especificamente no segundo domingo. Mas também possui várias comemorações que o antecede. Destacamos entre as atividades que o envolve: 1) a Passeata dos Motoqueiros que acompanham a imagem de Nossa Senhora de Nazaré até o município de Icoaraci; 2) o Círio Fluvial, quando a imagem retorna de Icoaraci à cidade Belém e 3) a trasladação que ocorre no sábado e tem como característica a transportação da imagem da santa do Colégio Gentil à Igreja da Sé. É neste momento que observamos a existência da festa sobre a qual esta análise se debruça.
Quando a imagem na trasladação – atividade que ocorre na virada de sexta‑feira para o sábado – passa
pela Praça da República, local onde se encontra o Teatro da Paz, inicia‑se a festa mais antiga no território
brasileiro que homenageia o público LGBT. Na manhã de domingo, o Círio de Nossa Senhora de Nazaré é “obrigado” a conviver com os resquícios do que fora abandonado pelos participantes do Baile das Chiquitas.
Para o desenvolvimento deste trabalho, observaremos a seguir considerações sobre patrimônio cultural.
Destarte, o patrimônio cultural, sendo considerado por determinado conjunto social como sua cultura própria, que sustenta sua identidade e o diferencia de outros grupos, não abarca apenas os monumentos históricos, como foi por bastante tempo considerado, mas também o desenho urbanístico e outros bens físicos, e a experiência vivida condensada em linguagens, conhecimentos, tradições imateriais, modos de usar os bens e os espaços físicos (Canclini, 1990, p. 99).
Tendo como ponto de partida a afirmação acima, o principal objetivo deste artigo vem a ser o de apresentar a existência do Baile das Chiquitas. Este, ligado a um dos mais antigos patrimônios imateriais do Brasil, O Círio de Nossa Senhora de Nazaré. Por este caminho que escolhi traçar, serão também abordados os conceitos de Sincretismo e Patrimônio Imaterial com o intuito de apresentar as mudanças, o antagonismo e a convergência presentes entre o Baile das Chiquitas e o Círio de Nossa Senhora de Nazaré.
HISTÓRICO DO MOVIMENTO
O Baile das Chiquitas na época de sua gênese, em 1978, não passava de um simples bloco de carnaval que contava com a participação de alguns intelectuais, jornalistas e artistas paraenses, ou seja, personagens da cidade de Belém os quais podemos classificar, poeticamente, como os frequentadores das “vigílias etílicas” promovidas pelo Bar do Parque, local onde até hoje ocorre esta manifestação cultural. Resumindo, este evento começou como um encontro de amigos cheios de irreverência e aparentemente sem discriminação, mas que na atualidade galgou dimensões bastante expressivas.
Com o passar do tempo, como é de se esperar em qualquer manifestação cultural, a festa não conseguiu
permanecer imutável. Tal fato para uns pode representar o declínio de toda a “magia” contida no evento. Porém, para outros pode representar a “ascensão” do Baile das Chiquitas devido à mega produção do evento e o grande número de participantes. Fato que pode ser associado ao pensamento desenvolvido por Sant’Anna:
Não podendo ser fundada em seus conceitos de permanência e autenticidade. Os bens culturais de
natureza imaterial são dotados de uma dinâmica de desenvolvimento e transformação que não cabe
nesses, sendo mais importante, nesses casos, registro e documentação do que intervenção, restauração
e conservação (Sant’Anna, 2009, p. 55).

No início o evento mantinha um caráter cordial entre os participantes e toda a concentração da festa acontecia ao lado do Bar do Parque em frente ao Teatro da Paz. Todavia, a festa das Chiquitas, a cada
ano que passa, aumenta expressivamente o número de participantes e estes passaram a ocupar todas as
áreas da Praça da República.
Mesmo com as acusações daqueles que defendendo uma suposta pureza pretérita e não concordam
com algumas mudanças que ocorreram com o decorrer do tempo, O Baile das Chiquitas ainda
mantêm muitas de suas atrações principais, sendo uma delas o prêmio O Veado de Ouro que é dado
à personalidade paraense que mais se dedicou durante todo o ano corrente a luta pelos direitos dos
homossexuais, como pode ser observado:
Já o ápice da noite, o prêmio Veado de Ouro, entregue aos que mais se dedicam na comunidade durante
o ano por sua contribuição contra a homofobia, é o que atrai o público. ‘Este ano o escolhido foi
Adilson Oliveira, que está defendendo uma dissertação sobre discriminação de professores homossexuais
nas faculdades’ […] (O Liberal; 2007 p.4).

Contudo, embora esta manifestação cultural tenha sido batizada com um nome bem sugestivo, o que poderia restringir os participantes somente a comunidade LGBT, vários são os representantes da sociedade belenense que frequentam o evento.
AMOR E ÓDIO: O EMBATE ENTRE O BAILE E A IGREJA
O animador oficial da festa é Eloy Iglesias, que aparece no documentário ‘As Filhas da Chiquita’. Numa das cenas, o artista conta que a festa convive em harmonia com o festejo religioso. Atribui a contradição
da parada gay e o Círio ao monopólio que a igreja tenta impor. Mas diz que a participação popular
é um fenômeno incontrolável.
‘O Círio de Nazaré já faz parte da cultura paraense. Extrapola a fronteira religiosa. Durante o Círio, em todos os municípios do Pará existem homenagens exclusivamente religiosas, cada uma com sua peculiaridade. A festa sempre teve o lado profano. (O Liberal; 2007 p. 4)
Sobre a obra de Eloi Iglesias
Por parte das hierarquias católicas, há uma relutância em aceitar a ligação da festa considerada profana com a festa religiosa da qual os católicos paraenses tanto se “envaidecem”. Para tanto, por ser uma vertente do pensamento judaico‑cristão, o catolicismo assim como o cristianismo como um todo, condena as práticas homossexuais. Assim sendo, negam a legitimidade do Baile.
O argumento por parte da Igreja é o de que as práticas homossexuais são biblicamente consideradas
pecado, portanto, condenadas pelo catolicismo. Esse pensamento é fundamentado pelo trecho bíblico a seguir: Com homem não te deitarás como se fosse mulher; é abominação e se também um homem se
deitar com outro homem, como se fosse mulher, ambos praticaram coisa abominável; serão mortos;
o seu sangue cairá sobre eles. (BÍBLIA; Levítico 18:22, Levítico 20:13)
De fato, o que não se pode é cair no erro de acreditar que um festejo com tamanha grandiosidade como é o caso do Círio de Nazaré, não irá apresentar junções de várias culturas mesmo que antagônicas.

Os que torcem o nariz para tanta tolerância terão mesmo é que se acostumar porque a festa da Chiquita atrai mais gente a cada ano. Ela consta no calendário oficial dos festejos do Círio de Nazaré, reconhecido pelo ministério da cultura, que […] tombou a festa como patrimônio imemorial do povo brasileiro. E desde 2004, é reconhecida como Patrimônio Cultural do Brasil. (O Liberal; 2007 p. 4)
Esta junção que por agora compreenderemos como sincretismo cultural, diferente do que o nome
pode deixar parecer, não ocorre de forma harmônica como em um sincronismo, mas sim de uma forma
sofrível, movida por um jogo irtercultural que prevê perdas e ganhos, trocas e negociações. Para que se
possa compreender a dimensão que ronda o que aqui entendemos como sincretismo, afirmamos que: […] sincretismo como termo‑chave para a compreensão da transformação que está se dando naquele processo de globalização/localização que envolve, transforma e arrasta os modos tradicionais de produção de cultura, consumo, comunicação. Essa palavra não somente abre portas à compreensão de um contexto feito de arrancadas e confusas mutações, mas também pode permitir direcionar esta crescente desordem comunicativa ao longo de correntes criativas, descentradas, abertas (CANEVACCI, 1996, p. 4).
Para que se possa perceber o sincretismo no Círio de Nossa Senhora de Nazaré, não precisamos recorrer
a livros ou a comentários de terceiros. Basta apenas que os curiosos que queiram conhecer um pouco mais sobre o que ocorre nas entranhas deste evento acompanhem todas as atividades que envolvem esta festa religiosa. Serão visíveis, para este neófito, as várias manifestações religiosas antagônicas ao catolicismo e que coadunam com o Círio, sem que ocorra repressão direta. Para a tristeza dos clérigos católicos, o Círio de Nazaré já transcendeu as pequenas paredes da instituição da qual outrora se originou.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As discussões que rondam a relação entre O Baile das Chiquitas e o Círio de Nazaré acabam por nos
guiar a duas questões básicas. Apontamos aqui, em primeiro lugar, o fato de que se devem considerar
as manifestações populares. As mesmas, ao entrarem em conflito com as tradições hegemônicas da instituição religiosa da qual podemos atribuir a patente do Círio, abre espaço para uma nova realidade social que não é mais tal igual à realidade social da qual se originou. Esta ocorrência permite a inserção das mais variadas e contraditórias relações culturais, quando este fato é colocado em pauta, abrem‑se também as dimensões de estudos que rondam as duas manifestações, ampliando as discussões com relação ao Patrimônio. Seja ele Patrimônio Material, Imaterial, Cultural, Global, entre outros.
Em segundo lugar, não podemos esquecer sobre as questões que tangem os registros de ambos os movimentos culturais. Em suma, ao concluir este trabalho, podemos afirmar que apesar de todo o caráter
espontâneo que é inerente a um Patrimônio Imaterial nos dias de hoje, graças às iniciativas de alguns órgãos patrimoniais se tem feito muito para que haja um registro desses patrimônios, para que estes em
alguns casos, não deixem de existir sem que se conheça algo sobre eles.
REFERÊNCIAS
CANEVACCI, Massimo. Uma exploração das hibridações culturais. São Paulo: Studio Nobel, 1996.
CANCLINI, Néstor Garcia. O patrimônio cultural e a construção imaginária nacional. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 23. Rio de Janeiro, 1990.
Vianna, L. Dinâmica e preservação das culturas populares: experiências de políticas no Brasil. Revista Tempo Brasileiro, 2001.
SANT’ANNA, Márcia. A face imaterial do patrimônio cultural: os novos instrumentos de reconhecimentos e valorização. In: ABREU,Regina e CHAGAS, Mário (orgs.). Memória e Patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio deJaneiro: DP&A, 2003. p.46‑55.