Parque do Flamengo

Escrito por Tony Boita e publicado na VII edição da Revista Memórias LGBT

“Este é o Aterro do Flamengo” – disse o taxista com orgulho, acostumado com turistas, tão logo chegávamos ao parque – É um ótimo parque feito pelo Burle Marx.

A frase, sem que fosse intensão do profissional, doeu em mim. Há algum tempo estudando
o patrimônio LGBT, já tinha notícias de que a idealização do parque, sua construção e propostas singulares que o caracterizam, são de autoria de uma célebre lésbica, Lota de Macedo Soares (1910‑1967).

Lota manteve um relacionamento produtivo e conturbado com outra lésbica célebre, a escritora estadunidense norte americana Elizabeth Bishop (ao que parece, Bishop apoiou a ditadura militar brasileira). Em 1960, com o Governador Carlos Lacerda eleito, Lotta é convidada a ser responsável por projetar o parque. Em 1961 a seu pedido o governador assina o decreto no 607 que criava juntamente a Superintendência de Urbanização e Saneamento – Sursan o grupo de trabalho para a urbanização do aterrado do Glória‑Flamengo. Este grupo possuía a seguintes funções: a) orientar e projetar todas as obras arquitetônicas, paisagísticas e artísticas, a serem realizadas pela Sursan no aterrado Glória‑Flamengo; b) supervisionar a urbanização e a composição paisagística da faixa do aterrado, na orla marítima Glória‑Flamengo; c) opinar sobre a eventual aquisição e localização de qualquer obra de arte a essa área destinada.

Créditos: Instituto Lotta | Heróis e Heroínas do Rio de Janeiro

Na primeira formação deste grupo de trabalho, Lotta era a presidente e ao montar sua equipe convida para realização do projeto arquitetônico Jorge Machado Moreira e o responsável pelo anteprojeto do parque Affonso Eduardo Reidy. Também integraram o grupo de trabalho Berta Leitchic (engenharia), Ethel Bauzer Medeiros (recreação), Carlos Werneck de Carvalho, Sérgio Bernardes e Hélio Mamede (desenvolvimento de projetos). Esta equipe contou com os serviços técnicos da Roberto Burle Marx e Arquitetos Associados responsáveis pelo serviço paisagístico, encontrados próximos ao Museu de Arte Moderna; o Laboratório de Estudos Marinhos de Lisboa, que solucionou os problemas do aterramento
do parque; e do Richard Kelly contratado especialmente para solucionar a iluminação do parque com os maiores postes de luz mundo inspirados na luz da lua.

Créditos: Instituto Lotta | Heróis e Heroínas do Rio de Janeiro

Burle Marx já era um nome célebre do paisagismo brasileiro e rival político dos aliados de Lota. Publicamente, ele inicia uma campanha para tomar o controle das obras do parque. As alianças de Burle Marx possibilitaram, ao fim, que seu nome viesse à frente, e, ao que parece, a memória oficial do Rio de Janeiro preferiu, ao fim, reconhecer a autoria do parque ao paisagista, o que penetrou no imaginário da cidade e desembocou em minha conversa com o taxista.

Créditos: Instituto Lotta | Heróis e Heroínas do Rio de Janeiro

De fato, o Parque do Flamengo tornou‑se um complexo paisagístico composto por dois parques, museus, monumentos, pistas, quadras de esportes, clubes náuticos e jardins. Ele foi tombado (número do processo
0748‑T‑64) no livro tombo arqueológico, etnográfico e paisagístico em julho de 1965 (IPHAN, 2012), em uma das últimas articulações de Lota para impedir que o parque fosse transformado em área residencial. Nesta conjuntura, tornou‑se mais confortável aos sucessores, sobretudo militares, escamoteá‑la da memória do projeto, o que talvez tenha contribuído para o processo de depressão que culminou em seu suicídio, em 1967.

Créditos: Instituto Lotta | Modices

Após trinta anos da inauguração do parque, em 1995 a prefeitura do Rio de Janeiro através da Secretaria de Cultura e o Departamento Geral de Patrimônio Cultural, realizou uma homenagem à idealizadora
do Parque do Flamengo. Entre as atividades, foi inaugurada uma discreta placa resinificando a autoria do parque com os dizeres “Idealizadora do Parque do Flamengo e presidente do grupo de trabalho
que transformou um aterro em jardim e área de lazer ativo.”

Ser Lésbica na Favela – Revista Memória LGBT – Edição 7
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Pensando nessa história, desci do táxi e pela primeira vez caminhei pelo Aterro, alcançando a placa que tenta solucionar a confusão. Queria ter conhecido Lota e dito a ela o quanto seu trabalho é importante
para mim, para as lésbicas, para a comunidade LGBT em geral. E queria lastimar, apesar do empenho, pelo desmerecimento de seu trabalho, apagado da memória nacional, ainda que a tal placa tente dar
conta do recado sem, contudo, advertir o imaginário da cidade. Também observei a movimentação LGBT por ali que, assim como outros grupos, tem o parque como lugar de referência.

E, ao fim, pensei quantos outros lugares nossos – quantos outros patrimônios LGBT – ainda estão silenciados, escondidos por equívocos discriminatórios, aguardando novas significações de sua história.

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