Por Augusta da Silveira de Oliveira

O Arquivo Lésbico Brasileiro (ALB) é produto de um amplo processo coletivo de prática de memória e constituição de redes, materializado em 2020. Se insere no rol de iniciativas para a preservação de registros a respeito das vivências LGBTQIA+, tanto no Brasil como internacionalmente, ciente de que o arquivo é um espaço de poder, um elemento não-neutro no processo de construção da memória (CARTER, 2006). Nesse processo, a memória aparece como dispositivo na criação de laços, de um senso de hereditariedade, e assume feição de resistência às tentativas de apagamento, reiterando sua força política (QUINALHA, 2022). Isso contribui para
reforçar a importância do trabalho de memória sobre sujeitos dissidentes da norma, e aponta para como as práticas arquivísticas podem articular grupos marginalizados.
Arquivos são lugares onde documentos transformam-se em outra coisa: evidência ou
perda, história ou inspiração para novas maneiras de fazer história (MARSHALL; TORTORICI, 2022). Os próprios silêncios do arquivo, imbuídos de relações de poder, podem apontar para dois processos: um de apagamento desses registros por parte de atores dominantes, uma reiteração da norma e dos sujeitos que conformam com ela; o segundo é o silêncio como estratégia, utilizado pelos marginalizados como ferramenta de proteção. Para isso, é necessário contextualizar o papel
da visibilidade no passado, como possivelmente perigosa para sujeitos fora da norma (CARTER, 2006). No caso das mulheres, o fato de os principais registros da existência lésbica serem fruto da intersecção dessas práticas com instituições estatais, a medicina ou a lei, sinaliza os perigos da exposição. Há um paradoxo: uma invisibilização/invisibilidade nos arquivos, ao mesmo tempo em que abundam discursos que prescrevem certo comportamento normativo para as mulheres e
que reiteram as dissidências.
No Brasil, salvo os registros produzidos por grupos lésbicos, especialmente a partir dos anos 1980, esbarramos na impossibilidade de traçarmos uma identidade fixa ao longo da história, dependendo de fragmentos de comportamentos desviantes em conflito com a normatividade. Isso também é um problema para outros arquivos que pretendem representar a comunidade LGBTQIA+. A respeito da história lésbica, Estelle B. Freedman (1998) afirma que não podemos depender de rótulos ou de evidência direta de comportamento sexual para localizar os sujeitos da história lésbica. Nesse sentido, quais os registros passíveis de serem arquivados por um arquivo que se denomina lésbico? Se dependermos de uma identidade estável e visível representada nas fontes, perdemos as nuances da experiência e o valor da ambiguidade e contradição que fazem parte das vivências lésbicas. O foco na visibilidade está enraizado na dependência da transparência: como se, ao vermos possíveis registros de práticas lesbianas, seu significado fosse evidente. Ao invés de lermos essas fontes procurando seus significados invisíveis, é possível examiná-las por meio de uma leitura direta: o que dizem a respeito do contexto em que foram
produzidas, que normas prescrevem para as mulheres e como essas foram contestadas, seja em público ou no privado.
Isso não anula o fato de que existem omissões e lacunas nas representações lésbicas nos arquivos. São justamente essas lacunas que dificultam a formação de uma identidade coletiva (CARTER, 2006). Buscando as vozes marginais desses registros, o objetivo do ALB é desestabilizar o discurso normativo, criticar as estruturas de poder e apontar para as descontinuidades que caracterizam a história lésbica. Subverter essas posições de poder e reiterar a centralidade das vivências lésbicas é também uma das propostas do ALB.
O ALB preenche uma lacuna na preservação da memória lésbica no Brasil, mas busca incidir em diferentes temporalidades: ao mesmo tempo em que se conecta com uma tradição de resistência lésbica, materializada em protestos e ações diretas, e de criação de uma subcultura que prosperou apesar da repressão, propõe reimaginar um futuro centrado na existência lésbica. Existência essa que entendemos em toda a sua pluralidade de manifestações e que tem na recusa
da norma um de seus principais traços. Ou seja, muito além de categorias monolíticas impostas por outrem.
Ao afirmar que arquivos não são somente repositórios de memórias imóveis no tempo, o ALB toma posição propositiva, de preservação de registros que possibilitam um futuro que desafia a dinâmica que invisibiliza as vivências fora da norma (MUÑOZ, 2009).
Nesse sentido, ao colocarmos o ALB em diálogo com iniciativas de memória
LGTBQIA+, bem como com episódios de resistência como a tomada do Ferro’s Bar após a repressão por conta da distribuição do boletim ChanaComChana, estabelecemos um continuum na produção e preservação da memória lésbica, ao mesmo tempo em que buscamos compreender as bases que sustentam essa identidade. Além disso, há uma implicação política e afetiva na
criação de acervos e coleções exclusivamente lésbicas. Um arquivo útil possui poder afetivo, capaz de produzir não apenas conhecimento, mas emoções e sentimentos (CVETKOVICH, 2003). Podemos entendê-lo, também, através da necessária ênfase na contingência, instabilidade e efemeridade do material arquivístico, mas ao mesmo tempo como um local onde significados e histórias tornam-se concretas, estáveis e reais (MARSHALL; TORTORICI, 2022).
A maior visibilidade de acervos como o ALB dentro e além das comunidades às quais se destinam sugere que eles possuem um papel social num debate mais amplo sobre memória e resistência LGBTQIA+. Iniciativas similares no Brasil e no mundo apontam que há espaço de discussão a respeito do lugar da existência lésbica na história dos movimentos sociais, do período ditatorial e da redemocratização no Brasil, bem como para a complexificação do entendimento a respeito das categorias identitárias contemporâneas e sua presença nos acervos.
Referências
CARTER, Rodney G S. Of Things Said and Unsaid: Power, Archival Silences, and Power in Silence. Archivaria, n.61, p. 215–233, 2006.
CVETKOVICH, Ann. “In the Archive of Lesbian Feelings.” An Archive of Feelings. New York: Duke University Press, 2003, p. 239–271.
FREEDMAN, Estelle B. “‘The Burning of Letters Continues’: Elusive Identities and the Historical Construction of Sexuality,” Journal of Women’s History 9, no. 4 (1998): 181–200, p. 193.
MARSHALL, Daniel; TORTORICI, Zeb (Orgs.). Turning archival: the life of the historical in queer studies.Durham: Duke University Press, 2022.
MUÑOZ, José Esteban. Cruising Utopia, 10th Anniversary Edition: The Then and There of Queer Futurity, NewYork, USA: New York University Press, 2009.
QUINALHA, Renan. Movimento LGBTI+: Uma breve história do século XIX aos nossos dias. Belo Horizonte: Autêntica, 2022.
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