Por Rogério Victor Satil Neves

É com grande prazer que compartilho com vocês minhas reflexões acerca da relação entre a construção da identidade e a representação do corpo a partir de um objeto muito presente em nossas vidas: o armário.
Nasci em uma família de sertanejos no árido cerrado de Goiânia, e desde cedo, me encantei com o ritual de domingo da minha avó. Ao retirar do armário sua melhor roupa para cantar uma moda de viola, ela afirmava que iria “brilhar” – e realmente brilhava. Esse armário, além de guardar as peças que moldavam sua identidade, nos faz refletir sobre como construímos e representamos nossos corpos.
O armário é, sem dúvida, uma metáfora e um espaço real que espelha a forma como construímos nossos corpos. Quando guardamos algo nele, estamos preservando uma parte de nós e reafirmando nossa identidade. Ao escolhermos uma peça do armário, decidimos o que queremos ser, criamos narrativas e mostramos nosso “eu” para o exterior.
Este objeto poderoso frequentemente delineia quem somos e como nos apresentamos ao mundo, atuando como um poema que expressa muito mais do que palavras podem transmitir. O armário nos permite revelar ao mundo a complexidade de nossa identidade, as nuances e os contrastes que compõem nosso ser.
No entanto, nem todos os armários são fruto de escolhas pessoais. Alguns são construídos para ocultar aspectos de nossa identidade considerados ameaçadores à ordem vigente. Esses armários simbólicos preservam, de forma violenta, sob um discurso conservador, aquilo que não é considerado “natural”. Mas, afinal, o que é natural? O natural consiste no que é possível ser, enquanto o não-natural desafia as leis físicas e representa o impossível – ou seja, aquilo que é impossível de se conhecer. Portanto, se é possível ser o que somos, esse argumento conservador nada mais representa do que a violência institucionalizada.
Os museus possuem dois tipos de armários: o acervo, onde objetos representativos do patrimônio são armazenados, e o “closet do museu”, que controla o que deve ou não ser mostrado. Os objetos do acervo deixam de ser meras “coisas” e se tornam peças que integram um jogo de poder. Eles compõem representações da história, da identidade e da memória, ou seja, fazem parte de um jogo de poder dentro da manipulação semântica da intepretação.
Os museus, ao longo dos períodos históricos, têm funcionado como espelhos da sociedade, exibindo seus armários de objetos e práticas culturais. No entanto, é fundamental questionar-se a respeito de qual sociedade é refletida, qual cultura é representada, quais práticas são ilustradas e que narrativas são sustentadas. E, ao se questionar, é importante considerar se a imagem espelhada é o retrato da violência institucionalizada.
O “closet do museu”, como conceito analítico, aborda os aspectos imateriais do armário do museu, determinando o que deve ou não ser exibido. Este processo de classificação, muitas vezes, rejeita elementos que desviam da representação escolhida, relegando-os ao closet. Historicamente, o closet existiu como espaço real na história museus. A análise de Stuart Frost (2008) acerca do Gabinete do Obsceno no Museu Herculano e do Museu Secretum no British Museum exemplifica a materialização do closet como um local reservado para objetos proibidos, revelando a censura e o deslocamento de objetos que representaram uma ameaça à ordem vigente.
Embora os museus sempre tenham apresentado armários como parte do processo de representação e construção de narrativas, é essencial questionar aqueles que ocultam a violência e perpetuam a injustiça no discurso. Assim, é necessário repensar o sistema representativo sob a ótica da responsabilização do sujeito. Ou seja: os closets precisam ser abertos e questionados.
Ao examinar a natureza da realidade humana, Sartre (2010) afirma que “a existência precede a essência” (p. 25). Isso significa que a humanidade não possui uma definição inerente e é moldada ao longo de um processo histórico. Luciene Braga Borges (2017, p.1) explica esse argumento, exemplificando que, embora não haja “determinismo psicológico” ou de qualquer outra natureza guiando nossas ações, é preciso assumir todas as consequências advindas delas. Isso significa atribuir total responsabilidade por seus atos.
Dentro dessa perspectiva, é crucial que os museus questionem e repensem a forma como projetam e representam a sociedade, cultura e práticas, assumindo a responsabilidade pelas consequências dessas representações. Em outras palavras, além de exposições que incluam os corpos violentamente rejeitados, é necessário que existam exposições que retratem e assumam a responsabilidade do discurso passado. Neste sentido, o museu não apenas abrirá o seu closet para inclusão, mas também se responsabilizará enquanto instituição participante na institucionalização da violência exibida.
Bibliografia
Borges, L. B. (2017, November 1). A ÉTICA DA RESPONSABILIDADE NA OBRA O SER E O NADA. Anais Dos Seminários De Iniciação Científica, 21. https://doi.org/10.13102/semic.v0i21.2336
SARTRE, J. (2010). O existencialismo é um humanismo. (tradução: Kreuch, J.). Rio de Janeiro: Vozes.
Frost, S. (2010). The Warren Cup: Secret Museums, Sexuality, and Society. In A. K.
Levin (Ed.), Gender, Sexuality, and Museums. London: Routledge, 138-150.
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